Aborto no Brasil: a lei que mata
Imagem: Viardel Cosme - Anatomical view of pregnant woman / Arte: Giovanna Cartapatti |
A
criminalização do aborto envolve questões médicas, jurídicas, éticas, morais e
religiosas. Em 2012, foi aprovado no STF, por dois votos contrários e oito a
favor, a não criminalização do aborto em casos de fetos anencéfalos, o que
forçou o debate acerca da autonomia da mulher e do direito reprodutivo. Em
2005/2006, foi feito um estudo com 4000 juristas no Brasil que observou que
mais de 80% deles acreditavam que as circunstâncias de não criminalização do
aborto deveriam ser ampliadas. Apenas 10% dos católicos do país acreditam que a
igreja deva prevalecer sobre a diversidade de opiniões. Seriam esses alguns “entretantos”
que comportam os ventos de mudança?
Entre
muitos (ou nem tantos) “entretantos”, não é a clandestinidade que mata as
mulheres no aborto. E sim a vulnerabilidade social. Estudos mostram que as
mulheres que optam pelo aborto chamado inseguro, em sua maioria, são pobres,
negras, migrantes, de baixa renda e escolaridade, solteiras e sem acesso à
contracepção. A mulher rica tem mais entrada e menos insegurança no processo,
portanto, mais chance de viver. Apesar de, no geral, o aborto ter porcentagem
mais baixa em comparação a outros casos de morte e morbidade materna, quando há
alguma complicação no aborto (sobretudo no inseguro), ela é mais prevalente.
Cerca de 5% das mulheres que têm complicações no aborto chegam ao near miss materno, expressão utilizada
para categorizar as grávidas que chegaram à quase morte durante quaisquer complicações
na gestação.
Mas,
então, o que leva às complicações no aborto inseguro? Menos o biológico do que
a carência da assistência técnica, com certeza. Existe uma norma brasileira,
intitulada Norma Técnica de Atenção Humanizada ao Abortamento, cujo nome é
autoexplicativo, que, mesmo em condição de norma, é impedida de ser
concretizada pela carência de vagas nos cuidados de pós-abortamento e pela
discriminação dos médicos perante as pacientes. O que nos leva, novamente, à
questão da lei. Estudantes de medicina não são treinados para lidar com tais
questões, além do preconceito causado pela criminalização do ato.
Ainda
há outra questão inerente ao caso do aborto: a gravidez indesejada. O
sentimento negativo que, desde a suspeita de gravidez cerca as mulheres,
levam-nas a ter o aborto como única consequência em uma história de
alternativas escassas. Decisão que traz consigo mais sofrimento físico e
emocional, justamente pela criminalização. Embora, no Brasil, tenha havido
melhoras no acesso à contracepção pelas mulheres de nível socioeconômico mais
baixo, segundo a PNDS de 2006, 26% das mulheres em questão, de 15 a 44 anos,
não utilizam nenhum método contraceptivo. Além de que, deve-se considerar as
relações de gênero implicadas na obtenção de contracepção. Embora continue como
um domínio feminino, a escolha do método pode ser feita em função de
preferências dos homens. O que resta, então, é a clandestinidade. Em um
contexto de sistema de saúde ineficaz, a ilegalidade está sim associada aos
procedimentos inseguros e à demora no atendimento médico.
O
aborto é objeto de forte sanção social. E a gravidez fora do planejamento
familiar também. É curioso como jovens de maior renda relatam menos ocorrência
de gravidez do que as de menor renda, mas, se isto aconteceu, recorrem mais ao
aborto (o mesmo acontece nos casos de violência: mulheres pobres denunciam mais
do que as ricas, é tudo uma questão de status). Há recorrências em estudos que
investigam óbitos maternos de jovens grávidas por suicídio. A estrutura da
ilegalidade leva a tormentos psíquicos. Se a desculpa da lei for o gasto
público, há uma pesquisa avaliando que, em 1991, no Rio de Janeiro, o total
gasto com internações por causas de complicações no aborto inseguro seria
suficiente para que o estado assumisse a realização de aproximadamente 62 mil
abortos seguros, ou seja, 91% dos procedimentos estimados para aquele ano.
São
por essas e outras que os resultados dos estudos acadêmicos devem ter
divulgação mais ampla na sociedade, de modo a superar a visão dualista e
ideologizada que marca a discussão sobre o direito ao aborto no Brasil.
+ Vídeo postado no instagram com trecho da reunião
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